PREFÁCIO
Antonio Nóvoa
A ÚLTIMA FRONTEIRA DA HUMANIDADE, DIZ-NOS, É A CONSCIÊNCIA[1]
Vivemos um tempo de mudanças profundas, rápidas, aceleradas. Tudo se transforma a uma velocidade vertiginosa, obrigando a uma permanente adaptação a novos processos, a novas tecnologias, sobretudo, a novas maneiras de viver em sociedade.
Há quem veja estas mudanças pelo prisma de um optimismo tecnológico que, mais tarde ou mais cedo, iria resolver todos os nossos problemas. É uma ilusão. Há quem, pelo contrário, se dedique a um pessimismo metódico, vendo a catástrofe a cada esquina. É um absurdo. O nosso trabalho é compreender, tentar compreender. É para isso que serve o nosso conhecimento, o pensamento, a indagação científica.
Como bem escreve, Walter Benjamin: “Para o génio, toda e qualquer censura, os pesados golpes do destino, e também o sono sereno, são parte do trabalho diligente da sua oficina. Génio é trabalho diligente”.
É a este trabalho diligente que se dedica Benedito Medeiros Neto, nesta obra dividida em quatro partes, que junta um conjunto muito importante de textos sobre O cidadão contemporâneo e as tecnologias de informação e comunicação. O autor adopta diferentes estilos de escrita, para nos introduzir numa reflexão rica e estimulante, que nos provoca, que nos obriga a pensar, que nos coloca perante dilemas centrais do futuro presente, isto é, do futuro que já é presente.
Ao longo dos quinze capítulos são, muitas vezes, os mesmos temas que voltam, mas retomados a partir de diferentes experiências e pontos de vista. Uma das qualidades deste livro é a capacidade do autor para ligar teoria e prática, para avançar elaboradas reflexões teóricas confrontando-as com experiências concretas, na universidade e em comunidades.
Um tema atravessa toda a reflexão de Benedito Medeiros Neto, a cidadania na era digital, sempre com uma preocupação com a desigualdade. É por isso que, logo no texto de abertura, apresenta a questão central do livro:
“A Sociedade Contemporânea está em um processo sem precedentes de imersão no meio digital (computação), em um ambiente de comunicação global, ubíquo, participativo e interativo […]: como explorar este novo meio e suas facilidades para aumentar o processo de Cognição Social e dirigir o desenvolvimento humano contra a desigualdade persistente? ”
Benedito Medeiros Neto tem razão quando escreve que, do ponto de vista da cidadania, as novas possibilidades digitais incluem e excluem, criam e retiram direitos, aproximam e afastam a participação. É esta consciência que nos permite enfrentar com lucidez o “admirável mundo novo” que as tecnologias de informação e comunicação têm vindo a fabricar.
Hoje, sabemos que George Orwell se enganou, no seu extraordinário 1984. O “Big Brother” não existe. A rede é o “Big Brother”. O panóptico total, e irreversível, é um manto reticular tecido diariamente pelas nossas próprias mãos, e a partir da nossa liberdade. Voluntariamente – por vezes, mesmo, avidamente – colocamos na rede as nossas vidas. O que somos. O que pensamos. O que desejamos. O que comemos. E onde? E quando? E com quem? Deixamos que a rede molde as nossas preferências, com sugestões de leituras, de lugares, de encontros, e até de sonhos. A única escapatória seria o refúgio num submundo, situado não numa imensa cave da Terra, mas antes numa implausível existência fora do digital.
Já chegou o dia em que a rede nos conhece melhor do que nós mesmos. Mas esta rede não é uma conspiração, é um entrelaçamento de vontades de pessoas livres. Hoje, explica-nos Jonathan Crary, “o principal fio condutor de nossa história de vida são as mercadorias electrónicas e serviços de mídia por meio dos quais toda experiência é filtrada, gravada ou construída”. Mas afinal onde está o problema? São as pessoas que decidem sobre as suas vidas? Ou não?
Simbolicamente, o problema pode ser ilustrado por esta passagem do autor de 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono: “Somos o sujeito obediente que se submete a todas as formas de invasão biométrica e de vigilância. E que ingere comida e água tóxicas. E vive, sem reclamar, próximo a reactores nucleares”.
Aqui estão os sinais da nossa abdicação pela responsabilidade em relação à vida. Este é o problema. A sobre-exposição espetacular das nossas vidas, parece traduzir-se num retraimento da nossa responsabilidade social. Como se quiséssemos afirmar exuberantemente o nosso direito à liberdade, individual, mas nos retraíssemos perante o exercício da liberdade como dever, isto é, como forma de intervenção nos grandes debates e decisões do mundo.
Não há refúgio num qualquer submundo, mas há uma saída possível. Permitam-me que recorra a uma palestra extraordinária dada por Maxine Greene, há 35 anos, sobre A educação pública e o espaço público: “Criar uma geração de espectadores não é educar. Não consigo imaginar um sentido coerente para a educação se algo de comum não surgir num espaço público”.
Esta é a nossa saída: valorizar e reforçar um espaço público de discussão e deliberação, de participação democrática, de cidadania com todos. É neste espaço público que a informação, a comunicação e a computação se podem fazer compartilhamento, capacidade de pensar e de agir uns com os outros. É este o sentido maior da cidadania que Benedito Medeiros Neto procura ao longo deste livro.
Yuval Harari, em duas obras de grande impacto, Homo Sapiens e Homo Deus, escreve que, pela primeira vez na história da humanidade, há uma dissociação entre a inteligência e a consciência. Nos nossos dias, já se produzem máquinas muito mais inteligentes do que os humanos, máquinas que têm capacidade de aprender. A última fronteira da humanidade, diz-nos, é a consciência.
Benedito Medeiros Neto tem razão: para uma cidadania consciente e participada, é fundamental promover novos modelos de educação e de aprendizagem, de cultura e de conhecimento, de presença e de decisão na sociedade. Com lucidez, ajuda-nos a pensar e a percorrer o caminho de uma cidadania com igualdade, até porque sem igualdade não há cidadania. É ao serviço deste propósito que o autor coloca a sua inteligência e a sua liberdade, dando-nos uma obra fundamental para compreender os dilemas que todos os dias enfrentamos na nossa vida pessoal e colectiva, na defesa dos nossos direitos e no dever de defendermos os direitos dos outros.
António Nóvoa
Professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e reitor honorário da mesma universidade. Candidato independente às eleições presidenciais de 2016 de Portugal.
[1] António Manuel Seixas Sampaio da Nóvoa, GCIP – ComRB, (Valença, 12 de dezembro de 1954) é um professor universitário português, doutor em Ciências da Educação (Universidade de Genebra) e em História Moderna e Contemporânea (Paris-Sorbonne). https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Sampaio_da_N%C3%B3voa